Mulheres são alvo de violência em todos os cantos do mundo, das Coreias ao Sudão, da Romênia ao Chile. Por aqui, contudo, a situação delas é ainda mais perigosa. Uma frase de Lourdes Bandeira, que foi professora de Sociologia na UnB, não tem saído da minha cabeça: “Ser mulher no Brasil equivale a viver num estado de guerra civil permanente”. De acordo com o que já escutei de familiares, amigas, conhecidas e pacientes, é a sensação de ter “um inimigo em cada esquina”.
Os dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado nesta quinta-feira, 20 de julho, infelizmente confirmam essas falas. Em 2022, o Brasil registrou 74.930 estupros, uma média de 205 casos por dia. É o maior número que já passou pela série histórica, medida pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública desde 2011, representando um aumento de 8,2% em relação ao ano de 2021.
Ainda é preciso pontuar que os 74.930 casos são somente aqueles notificados às autoridades policiais. Segundo Juliana Brandão, pesquisadora-sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o número representa apenas uma pequena fração do cenário de violência sexual do país. Dos casos registrados, 61,4% envolvem vulneráveis menores de 13 anos, e 8 em cada 10 vítimas de violência sexual são menores de idade.
Os casos envolvendo crianças e adolescentes aumentaram exponencialmente com o isolamento social imposto pela pandemia de covid-19: sem ir à escola e fechadas em casa à mercê do assédio, que tantas vezes parte da própria família, as menores se mostravam mais indefesos que nunca. Jovens meninas passaram a temer a sombra dos seus abusadores.
A violência sexual, além de uma óbvia e brutal violação a um direito fundamental, é causadora também de severos impactos à saúde sexual e reprodutiva das mulheres. Além da possibilidade de gravidez decorrente do estupro, vítimas desse tipo de abuso podem sofrer com traumas físicos, infecções sexualmente transmissíveis, contaminação pelo HIV.
Entretanto, as consequências psicológicas são ainda mais devastadoras, muitas vezes irreparáveis. Transtornos como estresse pós-traumático, ansiedade, fobia e depressão são recorrentes, sem mencionar abuso de drogas e tentativas de suicídio. De acordo com um artigo publicado pelo dr. Jefferson Drezett, professor na Faculdade de Saúde Pública da USP, a violência contra a mulher é uma das principais causas de anos de vida saudáveis perdidos por incapacidade.
O serviço médico de acolhimento às vítimas de violência sexual é, portanto, a primeira e uma das mais importantes etapas de assistência. Um atendimento humanizado, com acompanhamento interdisciplinar, é fundamental. A proteção às vítimas inclui, para além do suporte médico, uma articulação de vários profissionais, do apoio psicossocial às equipes especializadas de Justiça e Segurança Pública.
Acima de tudo, na relação médico-paciente persiste a necessidade de um cuidado especial, respeitando os limites de privacidade e confidencialidade e também a autonomia do sexo feminino. Situações extremas, a exemplo do aborto em gravidez por abuso, demandam um olhar empático e dedicado de nós, profissionais da saúde. O dever de amparo, farol da especialidade médica, deve brilhar ainda mais em momentos tão delicados.
Antonio Carlos Lopes, presidente da Sociedade Brasileira de Clínica Médica
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