Se hoje o acessoà saúde no Brasil ainda é deficitário, nos tempos dos nossos avós e bisavós o cenário era ainda mais árido. Inúmeras vezes, em especial nos rincões mais carentes do país, farmacêuticos desempenhavam o papel de médicos e farmácias (ou pharmacias, na antiga grafia) substituíam hospitais.
Eram os canais em que as pessoas buscavam medicamentos e orientações para o tratamento de males de todos os tipos. No entanto, nas últimas décadas tem sido observada a transformação de parte desses estabelecimentos que, aliás, agora são também chamados de drogarias. Antes voltados para a promoção da saúde,estão se tornando templos comerciais.
Não me entendam mal,sou um ferrenho defensor da praticidade. Entrar em uma farmácia para comprar um antibiótico (desde com recenta) e ter à disposição uma loja de conveniências, com itens que vão de lâminas de barbear à ração para cães, de maquiagem a balinhas de hortelã, poupa tempo e, sem dúvidas, pode facilitar a vida contemporânea.
“Evolução” compreensível, não fosse um pequeno detalhe: segundo recente reportagem de imprensa, atualmente um dos produtos à venda é a nossa privacidade.
Ainda que não apareçam nas gôndolas junto comcremes dentais, hidratantes e preservativos, dados sensíveis, de acordo com categorização da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) de clientes são comercializados cotidianamente. Grandes cadeias de drogarias, com seus bancos de informações que nada esquecem, vêm registrando, há anos,cada uma de nossas compras.
Elas conhecem nosso histórico de doenças e quando, onde e por qual valor adquirimos os produtos. Portanto, sabem mais sobre nossas vidas do que muitas pessoas próximas a nós.
Foi noticiado, dias atrás, que uma empresa integrante de uma rede de farmácias tem usado dados de 48 milhões de brasileiros para ganhar dinheiro com anúncios. Funciona assim: os anunciantes interessados a contatam, definem qual público querem atingir, e ela empreende uma busca em seu banco de dados.
No site da farmácia, nas redes sociais e no YouTube, a quem faz uso de anticoncepcional é direcionada propaganda x; a quem toma antidepressivo, propaganda y; e assim segue a caravana.
Isso porque exigem “apenas” o nosso CPF. Que atire a primeira pedra quem nunca forneceu o número do próprio documento para garantir desconto em medicamentos imprescindíveis.
Parece uma cessão inofensiva, mas você se sentiria confortável sabendo que um estranho está a par da sua frequência sexual, pela quantidade de camisinhas que consome? Se tem bebês em casa, pelo número de fraldas que compra? Se enfrenta problemas de impotência, mau hálito ou frieira, a partir dos itens que compõem o seu carrinho? Eu também não.
Além desermos usados como mera audiência estimulada a consumir, consumir, consumir, como manda o mantra do capitalista radical, os grandes descontos prometidos não passam de engodo.Os preços sem descontos são quase sempre fictícios, estão ali apenas para pressionar a clientela a informar o CPF. Em outros países, onde já existe ou se ensaia alguma regulamentação, tal exigência é descabida.
Nem tudo o que é legal é moral, aprendi cedo. Apesar de agirem em um limbo que a lei – ainda – não alcança, falta ética a certas corporações. Daí a importância de jogarmos luz sobre o tema e questionarmos os limites do lucro sobre a saúde.
O Estado não pode fingir que não vê o que acontece sob suas barbas. Se o compartilhamento de dados para obtenção de ganhos econômicos pode“ser objeto de vedação ou de regulamentação”, de acordo com o artigo 11 da LGPD, que haja lei e que a lei aja. Depressa.
Antonio Carlos Lopes, presidente da Sociedade Brasileira
de Clínica Médica
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