Coluna

O valor da humanidade: os Direitos Humanos e a redação do Enem

Esse fim de semana ocorreu o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). O Enem é uma prova realizada desde 1998 pelo INEP do Ministério da Educação do Brasil.

Primeiramente, o Enem tinha com objetivo avaliar a qualidade do ensino médio no país. A partir de 2009, o exame começou a substituir os vestibulares como forma de acesso ao ensino superior em universidades e institutos federais brasileiros por meio do Sistema de Seleção Unificada (SiSU), assim como em algumas universidades no exterior. Além disso, o Enem é adotado pelo Programa Universidade para Todos (ProUni) como referência para distribuição de bolsas de estudos integrais e parciais em universidades particulares, bem como para obtenção de financiamento estudantil por meio do Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (Fies).

Pela sua magnitude, atualmente é o segundo maior exame de seleção de universidades do mundo, ficando atrás somente do chinês; e pela sua importância por proporcionar a democratização do acesso ao ensino superior público e de qualidade, o Enem sempre esteve em foco político e jurídico. Em 2009, houve suspeitas de vazamento da prova. Em 2010, erros de impressão em 0,05% das 4,6 milhões de provas aplicadas fizeram com que a Justiça do Ceará tentasse suspender os exames em todo o território nacional. Em 2011, novas denúncias de vazamentos estamparam as manchetes de jornais. No entanto, desde então, o exame vem se aperfeiçoando e ocorrendo de forma satisfatória para algo dessa grandiosidade.

Os principais debates sobre o Enem, recentemente, estão ocorrendo em virtude do conteúdo solicitado na prova, inclusive na redação. Por exemplo, em 2016, a prova foi criticada por grupos reacionários em diversas redes sociais por abordar filósofos como, Simone de Beauvoir e Paulo Freire. Esses grupos também se indignaram com a temática da redação daquele ano, que foi: “A persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira”. As alegações eram que a prova estava fazendo doutrinação socialista e feminista.

Um dos principais grupos que se revoltaram contra o Enem de 2016 foi o denominado Escola Sem Partido, coordenado pelo advogado Miguel Francisco Urbano Nagib. O Escola sem Partido alega que a educação brasileira faz doutrinação política. Se alguns professores socialistas são autoritários e tentam doutrinar seus alunos, distorcendo fatos e personalidades, o Escola sem Partido quer fazer o mesmo, porém com uma ideologia fascista e reacionária. O movimento é composto por pessoas não especialistas em educação, ligadas ao mercado e com forte influência religiosa.

O viés fascista do Escola sem Partido ficou extremamente claro neste ano de 2017. O movimento entrou com recurso na justiça pedindo o fim da obrigação dos candidatos ao Enem de respeitar os Direitos Humanos em suas redações. Desse modo, a partir dessa decisão, que foi acolhida pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região e que foi mantida pelo Supremo Tribunal Federal – STF, qualquer candidato que fizer apologia ao crime de tortura, de mutilação, de execução sumária, de estupro, etc não poderá ter sua redação anulada mais. Antes o candidato tirava nota zero.

Na sua justificativa para manter o pedido do Escola sem Partido, a presidente do STF, ministra Cármen Lúcia, usa a argumentação de que é preciso respeitar a liberdade de expressão. Pela lógica, para o STF, o direito de liberdade de expressão está acima do combate às opressões sobre minorias. Por exemplo, se essa regra estivesse em vigor ano passado, o candidato ao dissertar sobre a violência contra as mulheres no Brasil poderia tranquilamente defender que mulher que cometesse o adultério merecia ser apedrejada pela população. Este ano, o tema da redação foi: “Desafios para a formação educacional de surdos no Brasil”. Com a nova regra o candidato tem a “liberdade de expressão” de argumentar o absurdo de que os surdos deveriam ser encaminhados para “escolas” campos de concentrações, como os que existiam na Alemanha nazista e na União Soviética, por exemplo. Ele está livre para defender a eugenia.

O Brasil assistiu ao longo dos 517 anos de sua história, enquanto território vinculado aos valores ocidentais e cristãos, diferentes tipos de massacres. Massacres que passam pelo genocídio indígena, pela vergonhosa e aviltante escravidão negra, pela exploração degradante de trabalhadores e de trabalhadoras. Somos um país em que mulheres são estupradas e mortas às dezenas diariamente. Onde mais mata travestis e transexuais no mundo. Onde homossexuais são agredidos e mortos simplesmente por demonstrar amor em público. Onde a cada 23 minutos um jovem negro da periferia é assassinado. Onde temos a policia que mais mata e mais morre no mundo, só este ano foram mais de 103 policiais mortos no Rio de Janeiro.

O Escola sem Partido e o Movimento Brasil Livre (MBL), com outros setores da sociedade, estão realizando uma campanha de desmoralização dos Direitos Humanos já faz tempo. Os movimentos reacionários precisam compreender que Direitos Humanos não tem ideologia! Não são da esquerda nem de direita, mas pertencem ao conjunto da humanidade. É a evolução da nossa consciência como seres humanos. Somente pessoas com viés totalitário que os menosprezam, independentemente de serem de esquerda ou de direita.

Os Direitos Humanos, quando introjetados na sociedade, proporcionam a capacidade de que todos sejam reconhecidos como iguais. O debate dos Direitos Humanos se levantou de forma significativa na história da humanidade após a Segunda Guerra Mundial. Em 1948, após o horror do nazismo, líderes de diversos países, incluindo o Brasil, se reuniram na ONU e aprovaram em sua Assembleia Geral, a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Sua meta é promover a paz e a vida. Impedir que pessoas fossem perseguidas e mortas por suas ideias, seu gênero, sua religião e sua etnia. O Brasil foi um dos primeiros signatários do documento. A decisão do STF, permitindo o discurso de ódio na redação do Enem, sinaliza o retrocesso desse país. Legitimamos o ódio.

A sociedade brasileira precisa recordar que Hitler usou o discurso de ódio na Alemanha; que Slobodan Milosevic utilizou do discurso de ódio para desumanizar e exterminar os muçulmanos na Bósnia; que Josef Stalin lançou mão do mesmo mecanismo contra seus opositores políticos na URSS; que os Hutus usaram discurso de ódio nas rádios chamando os Tutsis de “baratas” e matando quase 1 milhão de pessoas em Ruanda em 1994.

Ao colocar a liberdade de expressão como algo sem limites separando-a do conceito de justiça, o STF comete um pecado social e cultural extremamente perigoso. A liberdade de expressão deve ser prezada e defendida por todos, porém isso não quer dizer que ela não possui barreiras. As barreiras da liberdade são os limites do que nos torna humanos, isto é, do que nos afasta da compaixão racional. Segundo o psicólogo canadense Paul Bloom, a compaixão racional é sentir algo pelo outro, e não sentir algo com o outro. É você observar que o outro tem o direito à humanidade assim como você e os seus.

A nossa esperança é que os jovens nascidos em plena Era da Informação e que estão prestando o Enem este ano não entrem nessa onda reacionária e de intolerância que está cobrindo parte da classe média mundial. Eles possam nutrir a compaixão racional, não saem proferindo e realizando menosprezo pelos sentimentos alheios. E que lutem pelo direito de sermos reconhecidos como seres humanos, coisa que em pleno século XXI parecia tão óbvio, mas não é. Caso contrário, o declínio do valor de humanidade em uma sociedade será o declínio de seu desenvolvimento.

Isaías Albertin de Moraes é doutorando em Ciências Sociais com ênfase em Estado, Sociedade e Política Pública pela Unesp/Araraquara.

Fernando Antonio da Costa Vieira é Professor Adjunto do Programa de Pós Graduação em Sociologia Política do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ) da Universidade Cândido Mendes.

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