Coluna

As balas perdidas de um país perdido

A desesperança tomou conta definitivamente do Brasil. Aparentemente, apesar do altíssimo desemprego, das seguidas denúncias de corrupção e do alastramento de doenças antigamente consideradas “sob controle” pelas autoridades, as pessoas continuam a festejar o Carnaval a lotar bares, restaurante e shoppings. Afinal de contas, é preciso viver, mas, mais do que nunca, é preciso aprender a não morrer.

Como se morre no Brasil de hoje? Deixando de lado as causas naturais, as doenças e a velhice, é grande a chance de um cidadão comum, não envolvido em nenhum crime, morrer de bala perdida, haja vista os episódios recentes no Rio de Janeiro.

“De susto, de bala ou vício eu vou morrer”, diz a já antiga canção de Caetano Veloso e Gilberto Gil. Na verdade, dos três, o susto deve ser o que atualmente mata menos no Brasil, pois estamos tão acostumados aos escândalos, políticos ou não, divulgados pela mídia que não é qualquer bicho-papão que nos assusta.

A bala perdida, enfim, não constitui mero produto do acaso. Pode-se afirmar que ela se insere no contexto de um país “perdido”, que há muito não sabe qual rumo tomar. De fato, só para dar um exemplo do desnorteamento geral, levou-se a cabo o segundo processo de impeachment de um presidente nos últimos 25 anos e agora há chances de afastar do poder também o vice-presidente que substituiu a nossa ex “dama de ferro”.

Aparentemente, motivos há de sobra para cassar a eleição de Temer. Os mesmos financiamentos ilícitos que financiaram a eleição de Dilma também financiaram a eleição do seu vice, que há meses ocupa o poder. O problema está no vazio que poderá advir de um possível afastamento de Temer e as consequências imprevisíveis para a combalida economia de mais uma crise política. No entanto, é preciso que os juízes façam cumprir as leis, mesmo a custo de instaurar o desarranjo do poder político.

Infelizmente, a mesma bala que matou dois inocentes nos últimos dias está matando também a vontade de reagir do brasileiro. Aparentemente, tudo vai mal e não há o que fazer. É preciso esperar que a economia se recupere, mas há poucos anos o que se dizia era que o país alcançaria rapidamente a qualidade de vida dos países do Sul da Europa. Lembro-me de Hélio Jaguaribe, nos anos 80, afirmando que, se não me engano, o Brasil poderia alcançar o nível de desenvolvimento da Espanha e da Itália ainda nas primeiras décadas do século XXI. Agora, na opinião de especialistas, se não pararmos de crescer, isto é, se conseguirmos voltar a crescer, alcançaremos o nível de desenvolvimento da Grécia, um dos países mais pobres da Europa, somente daqui a duas ou três décadas, sendo otimistas!

Enfim, perdidos e atônitos estamos todos, policiais e bandidos, trabalhadores e malandros, na expectativa de mais uma crise. Não há consenso algum entre intelectuais, entre políticos de esquerda ou de direita, ou entre governantes e governados. Cá e lá surge um estopim de revolta, seja ela na forma de “guerrilha urbana”, em que desesperados pegam em armas e assaltam, como consequência de uma ambição cega propagandeada pelas mesmas forças econômicas que depois lamentam as consequências dos atos criminosos. Ou então a violência explode nos espetáculos de massa, isto é, em um dos vários circos que têm por função desafogar rancores e ressentimentos coletivos sempre presentes no ar. Há ainda os que se aproveitam de legítimos protestos para badernas ou destruição de bens públicos ou privados. Há, enfim, os que se esquivam dos verdadeiros e necessários debates políticos civilizados, aproveitando para insuflar ódios e esperar que o circo pegue fogo.

Enfim, se é preciso optar por morrer de susto, bala ou vício, eu diria que estamos no momento ideal. Voltando à canção de Caetano e Gil, só lamento que a opção final, proposta pelos poetas-compositores, de morrer nos braços de uma bela mulher, não me parece condizente com os tempos que estamos vivendo: tempo de balas perdidas, tempo de esperanças e valores perdidos!

 Sérgio Mauro é professor da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp de Araraquara.

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