De algumas semanas para cá, tenho refletido bastante quantos aos versos de “Filhos da época”, poema afiado da polonesa Wisława Szymborska. É difícil pronunciar o nome dela, mas fácil é apreciar suas ideias.
“Somos filhos da época/ e a época é política./ Todas as tuas, nossas, vossas coisas/ diurnas e noturnas,/ são coisas políticas./ Querendo ou não querendo,/ teus genes têm um passado político,/ tua pele, um matiz político,/ teus olhos, um aspecto político.”
O que a vencedora do Nobel de Literatura traduz em texto deveria ser lido por toda a classe médica. Em especial por aqueles e aquelas que ainda hoje, em 2023, se mantêm isentos diante de acontecimentos políticos, sejam eles institucionais ou não.
Ora, não lhes diz respeito o impacto direto que as decisões dos representantes que elegemos têm sobre as vidas das pessoas – pessoas como nós, como nossos pacientes?
Falo sobre orçamento público, sobre financiamento para pesquisa e inovação, sobre acesso à saúde, sobre determinantes sociais – moradia, educação, emprego -, que implicam de maneira significativa no bem-estar da população. Os que se abstêm do debate perdem a chance de influenciar transformações positivas no meio em que vivem.
Por isso, em 17 de outubro, a Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC), advertindo que a LGBTIA+fobia leva ao adoecimento e à morte, publicou uma nota de repúdio ao infame Projeto de Lei (PL) 580/07, da Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família da Câmara dos Deputados, que altera a Lei nº 10.406 e proíbe o casamento entre pessoas do mesmo sexo de registro. A discriminação, a violência e a retirada de direitos de mais de 10% dos cidadãos do país, não nos cansamos de apontar, afetam a saúde mental, emocional e física de indivíduos LGBTIA+ e de suas famílias ou entes mais próximos.
Trabalhos de Michael King, Richard Liu, Theodore Caputi e numerosos outros pesquisadores indicam que o suicídio e a autolesão não-suicida acontecem mais vezes entre a população LGBTIA+ do que entre cisheterossexuais. Também é maior o risco de desenvolvimento de depressão, ansiedade e dependência de álcool e outras drogas. Em contrapartida, políticas públicas em defesa dos seus direitos estão associadas à redução desses índices, segundo estudos como o de Mark Hatzenbuehler.
Nós, profissionais do cuidado, não podemos nos limitar à busca por tratamento e cura para os males já instalados; devemos ainda estar atentos aos riscos de adoecimento, à prevenção de doenças e à promoção de saúde. Precisamos, portanto, compreender que o Projeto de Lei 580/07 representa uma ameaça ao bem-estar de toda a sociedade.
Em nome da SBMFC, convoco os médicos de família e comunidade e todos os profissionais da área a se posicionarem contra projetos discriminatórios e a se engajarem na promoção de uma abordagem integral da saúde, baseada em evidências científicas, que reconheça e respeite a diversidade da população. Se outras entidades juntarem suas vozes a essa causa, defendendo não apenas o direito ao casamento igualitário, mas à integridade mental, emocional e física da comunidade LGBTIA+, conseguiremos resistir a retrocessos. “Somos flecha e somos arco”, diriam Os Saltimbancos. União e comprometimento coletivo ainda nos levarão longe.
Zeliete Zambon, presidente da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade
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