“Nunca esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.”
O Sistema Único de Saúde constitui uma das maiores conquistas do povo brasileiro a partir da Constituição de 1988. O SUS tem se consolidado durante quase quatro décadas sob ataque da elite econômica que enxerga na saúde pública um gasto e deseja, de fato, a privatização total do sistema. Como não conseguem de pronto, faturam por etapas, colocando obstáculos à atenção universal, integral e igualitária dos serviços de saúde.
Como expresso na poesia acima de Carlos Drummond de Andrade, publicada na Revista de Antropofagia, edição 3 de 1928, pedras são postas no caminho de uma Regulação ideal, projetada em 2010, visando extinguir as filas de fato para exames, internações e cirurgias. O primeiro obstáculo foi constituir o Cross como uma ferramenta tecnológica e, segundo, promover a centralização na operação do sistema.
A terceira pedra no caminho refere-se à ausência de transparência no Sistema Cross.
Dona Idalina, de 66 anos, moradora de Hortolândia, vai ao posto de saúde com frequência. Diz conhecer todos os funcionários a quem cumprimenta. E sempre pergunta sobre a sua necessária cirurgia no aparelho digestivo. Fez todos exames e aguarda há dois anos. Como resposta, ela escuta: “a senhora está na fila”. Então, indaga-se: “Qual fila? Que lugar na fila? Na farmácia me dão uma senha… e eu sei esperar, mas esperar sem senha não dá”.
Não dá.
O senhor governador sancionou, em dezembro de 2023, a lei 17.745, que possui a seguinte ementa: “Assegura transparência na fila da saúde por meio da obrigatoriedade da divulgação da ordem de espera de pacientes que aguardam realização de procedimentos ofertados pela Central de Regulação de Oferta de Serviço de Saúde (Cross) e unidades do Sistema Único de Saúde (SUS) no âmbito do Estado”.
Passados mais de 12 meses, nenhuma letra foi cumprida. Minha retina, vide Drummond, está cansada de enxergar que a ferramenta do Cross não foi aberta para a utilização da população paulista.
Em 2024, segundo o Siresp (Sistema Informatizado de Regulação do Estado de São Paulo), foram realizados 649 mil procedimentos de exames, internações e cirurgias. Também foram realizados 133 mil atendimentos de oncologia e especialidades médicas. No entanto, a falta de transparência se manifesta ao não sabermos o quantitativo da fila, ou seja, não conhecemos o universo de pessoas no Estado de São Paulo que estão atualmente esperando por um exame e procedimento cirúrgico de média e alta complexidade.
A falta de transparência afeta diretamente o paciente e suas famílias, pois eles desconhecem o seu lugar na fila de espera.
Estes fatos geram um ambiente de insegurança, ansiedade, desespero e até desesperança que podem resultar em danos à saúde mental do paciente e familiares.
Em uma sociedade de privilégios, o processo obscuro gera e incentiva a desconfiança no serviço público: quem controla o sistema? Quem decide? Quem controla os controladores? Quais são os critérios utilizados?
Com aporte orçamentário extra, o governo federal criou em 2023 o Programa Nacional de Redução das Filas, que contribuiu para realizar 14 milhões de cirurgias eletivas em 2024. Um recorde. No entanto, reportagem do Jornal Nacional de 15 de fevereiro de 2025, com base na Lei de Acesso à Informação, apontou que a fila naquele ano aumentou 26% em relação a 2023. Metade da fila de espera situa-se nos estados de São Paulo e Minas Gerais: 600 mil pacientes.
Qual é a influência do excesso de judicialização da saúde na fila do Cross? Quantos paulistas migraram dos altos custos dos planos de saúde privados para a saúde pública? Qual foi o investimento extra no orçamento do Governo de São Paulo para redução da fila?
Para jogar luz sobre esta cortina de fumaça, a não transparência do sistema e a ausência de dados correlatos do Sistema Cross, estamos realizando audiências públicas nas cidades desde 2024. Autoridades locais e especialistas da saúde pública, a Pastoral da Saúde, os conselhos e a população têm o direito de falar e serem ouvidos.
A quarta pedra no caminho refere-se à falta de recursos orçamentários para Saúde ou o seu desdobramento: para onde vai o dinheiro?
Em 2024, visitamos um hospital público e fomos testemunhas de que um único equipamento de saúde, um tomógrafo, cujo valor varia de R$ 500 mil a R$ 1,2 milhão, em dois anos de uso, possibilitou o atendimento de sete mil pacientes. Ou seja, o investimento ajudou exemplarmente na redução da fila.
O orçamento público de 2025 destinado à saúde é significativo. O governo federal destinou R$ 209 bilhões para a pasta. O Governo do Estado contará com R$ 36 bilhões, e os municípios empenharão bem mais que os 15% constitucionais sobre as suas receitas. A leitura simplista de que “há muito dinheiro e é mal gasto” não se sustenta.
A OMS (Organização Mundial da Saúde) mostra que o Brasil gasta menos com a saúde do que os países sul-americanos. O órgão da Organização das Nações Unidas considerou a média da porcentagem dos gastos de saúde em relação ao total do PIB (Produto Interno Bruto) entre os anos 2012 e 2021.
O Brasil gastou 3,92% do PIB, a Argentina, 6,34%, o Chile gastou em média 4,36% e a Colômbia, 5,44%. Especialistas em orçamento público da saúde no Brasil concluem que há um subfinanciamento crônico cuja meta seria atingir 6% do PIB.
Como é retirado o dinheiro da saúde? Dois exemplos.
A lei do “teto de gastos” levada a termo pela Emenda Constitucional nº 95/2016, aprovada após o impedimento da presidenta Dilma, ocasionou uma perda orçamentária superior a R$ 70 bilhões para a saúde pública no período de três anos (2018-2020) que abrangeu o estudo do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada).
O desinvestimento em saúde pública, em sucessivos anos até 2025, não seria a ponta do iceberg relacionada ao aumento desproporcional da fila do SUS – 26% – em 2024? Para onde foram destinados os recursos?
A lei do “teto de gastos” não abrangia, conforme os interesses dos bilionários e da elite financeira do país, os serviços e os juros da dívida pública nunca auditada. Em 2024, segundo a auditora fiscal aposentada da Receita Federal, Maria Fattorelli, foram pagos R$ 1,997 trilhão aos sigilosos detentores de títulos da dívida pública federal. Isto equivale a quase dez vezes o orçamento da Saúde do governo federal. Grande parte deste montante de juros e amortizações é destinada aos 0,1% mais ricos do país.
Segundo a coordenadora nacional da Auditoria Cidadã da Dívida e membro da Comissão Brasileira Justiça e Paz (CBJP), Maria Fattorelli, nos seis primeiros dias de 2025, o governo pagou mais R$ 411 bilhões para o Sistema da Dívida. E ainda, de acordo com dados do próprio Banco Central, em dezembro de 2024, a cada 1% de aumento na Selic, há um gasto extra com juros da dívida pública de R$ 55,2 bilhões por ano.
Outro exemplo. Estimativa do economista Pedro Eduardo Santana Tupinambá, que integra os estudos da Escola de Governo da Fiocruz, aponta que o governo deixa de arrecadar anualmente R$ 55 bilhões por causa da renúncia fiscal ao setor privado de saúde que contempla apenas 20% da população brasileira, aqueles com melhor renda. O dreno de recursos públicos via renúncia fiscal aprofunda a desigualdade. É o equivalente a um quarto do orçamento da Saúde do governo federal.
Mesmo assim, o SUS cuida de 180 milhões de brasileiros todos os dias. A luta por mais recursos para a saúde significa, decisivamente, a redução das filas de espera para cirurgias, exames e para um leito no hospital.
“E aquela gente gritava, exigiam saúde expedita, rezavam alto, discutiam uns com os outros, desesperavam de fé sem virtude – requeriam era sarar, não desejavam Céu nenhum.” (Guimarães Rosa, Grande Sertão: veredas)
Após percorremos e conhecermos esses quatro obstáculos, “pedras” no caminho da busca de uma atenção digna na saúde pública, chegamos a uma conclusão muito importante: o Sistema Cross, criado em 2010, tinha como propósito principal o término das filas ao redor das unidades de saúde e hospitais. Aquelas filas “gritavam”. No entanto, o Sistema acabou por criar uma outra fila, uma fila virtual, invisível e distante demais para se ouvir.
Em momentos outros da história da civilização, os doentes e enfermos eram retirados das cidades e segregados. Ficavam escondidos, tornados invisíveis. Ao não haver informações sobre a fila de espera e para aqueles que querem “sarar”, edificamos a invisibilidade.
Em 2023, o compositor argentino Leon Gieco visitou o Papa Francisco e cantou para ele a canção eternizada na voz de Mercedes Sosa que em determinada estrofe diz: “Eu só peço a Deus que a dor não me seja indiferente”.
O oposto da saúde não é a doença, é a indiferença.
Uma palavra resume aquilo que os cidadãos vivenciam diariamente no Sistema Cross: a indiferença à condição humana. A indiferença gera a invisibilidade da fila dos que sofrem.
Que a fila do Sistema Cross não nos seja indiferente.
Ana Perugini é deputada estadual e coordenadora da Frente Parlamentar do Sistema Cross/SUS na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo
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