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O beijo que não queima

Na praça de alimentação, ele inclina a cabeça, ela faz o mesmo. Os lábios se encontram num ritual que deveria ser cheio de fervor, mas há algo ali que não pega fogo. O beijo é breve, quase mecânico, um cumprimento protocolar diante dos olhares alheios. Eles sorriram para os amigos que estavam na mesa, como que certificando o público: “Estamos bem. Somos felizes.” Mas o brilho que deveria cintilar no fundo dos olhos de quem ama está em algum lugar perdido, talvez nos e-mails de trabalho ou nas mensagens acumuladas no celular.

Esses são os casais da era da aparência, protagonistas de romances para a câmera do smartphone e estatísticas para as redes sociais. O mundo moderno parece ter transformado o amor em performance, uma coreografia ensaiada entre a mesa do jantar e o feed do Instagram. Eles postam a foto do jantar à luz de velas, mas a chama da vela é mais quente que a conversa entre eles.

Em tempos de lutas sexistas e discussões sobre igualdade, o amor parece ter perdido o sabor original. O beijo, que deveria ser faísca, tornou-se apenas um símbolo. Não raro, vemos casais presos em armistícios silenciosos: ele cede um pouco aqui, ela tolera um pouco ali, e juntos assinam um tratado que evita brigas, mas também impede paixões.

Essas dinâmicas são muitas vezes reflexo de um mundo em disputa constante. A busca por validação – seja profissional, pessoal ou virtual – transforma o amor em mais uma tarefa na lista de pendências. E enquanto as discussões de gênero ecoam em todos os cantos, muitos casais parecem ignorar que o verdadeiro diálogo começa no toque, no olhar, no beijo que diz tudo sem uma única palavra.

O amor que não arde é triste, mas o mais alarmante é que ele também é cômodo. Não há paixão suficiente para incendiar o coração, mas tampouco há conflitos que o estilhaçam. É morno, previsível, mas, acima de tudo, aceito. Afinal, neste palco social onde tudo é visto, julgado e comparado, parecer feliz já é meio caminho andado para se sentir menos só.

Ainda assim, vez ou outra, surge aquele casal que se beija no mercado como se estivessem num filme antigo. Eles não olham para os lados para saber quem os vê. O beijo é imprudente, o riso é sincero, e há uma pequena dose de inveja nos olhares de quem os rodeia. Eles nos lembram que o amor verdadeiro ainda existe, mas exige coragem – coragem de sentir, de se entregar e, principalmente, de não viver apenas para parecer.

No fundo, talvez a luta maior não seja entre gêneros, mas contra a nossa própria incapacidade de nos conectarmos com autenticidade, no amor ou fora dele. Talvez o beijo que queima ainda seja possível – desde que a chama não esteja em outro lugar.

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