Volto a escrever sobre a Previdência. Não me move o oportunismo de aproveitar o mau momento do governo que promove reformas tidas e havidas como redentoras. O chefe de governo está nas cordas, atordoado, e o juiz já iniciou a contagem para declarar nocaute. Não me move nem mesmo o que os alemães chamam de Shadenfreude, pois a minha sólida formação cristã ensinou-me a ter piedade do próximo que sofre, ainda que este esteja distante e não a mereça.
Não volto à vaca fria por interesse pessoal, embora tenha sido diretamente atingido pela reforma em curso. Ao contrário do que se possa pensar, aceito serenamente as condições que ela me impõe. Caso não esteja cego, surdo, manco ou louco e perceba que os alunos, sempre jovens, ainda me suportam sem intenso sofrimento, continuarei trabalhando alegremente até os 65 anos ou mais, se as circunstâncias permitirem ou exigirem. Ao contrário de boa parte dos membros do atual governo, não estou preocupado com o futuro imediato, mas com o futuro que vai além, inclusive, da minha breve e obscura existência terrena.
O jornal Folha de S. Paulo divulgou há poucos dias (17/5) um estudo da insuspeita consultoria McKinsey, que prevê a substituição até 2066 de metade dos atuais empregos no Brasil por processos de automação. Como os tratores, navios, caminhões e carros sem motoristas, assim como os velhos robôs, já são uma realidade, para gáudio dos empresários, e a inteligência artificial parece estar a caminho, tais previsões são bem credíveis. À luz desse estudo, o equívoco da direção que se dá à reforma da Previdência parece-me evidente. Toda ela é baseada no argumento de que é preciso encontrar um equilíbrio entre a supostamente estagnada base de contribuição e o montante consumido pelos crescentes benefícios concedidos. Quando aquele admirável mundo das máquinas for uma realidade, o número de contribuintes, isto é, de trabalhadores na ativa, com carteira assinada, será bem menor do que o atual, com o agravante de que a existência inevitável de um vasto exército de desempregados vai implicar em intensa deterioração dos salários e das condições de trabalho, algo que já se inicia nos dias de hoje com a nova lei da terceirização e a chamada reforma trabalhista. Portanto, a arrecadação das contribuições previdenciárias vai, por força, cair dramaticamente. Governantes com mentalidade de guarda-livros não terão soluções para esse problema. O que o sucessor de Meirelles vai propor? Dobrar o percentual das contribuições? Cortar pela metade o valor dos benefícios? Elevar a idade mínima para 85 anos? Quando se verifica que as obras mais vistosas construídas pelos atuais governantes não são escolas ou hospitais, mas presídios, não há saída senão temer as soluções que poderão sair da cabeça do Meirelles do futuro.
Tudo, aliás, vai muito mal. Grandes empresários são recebidos em palácio e podem livremente sussurrar seus pleitos ao pé das orelhas governamentais, utilizando argumentos que não estão ao alcance do José da Silva, boia-fria, ou do Manuel da Costa, estivador. Muitos desses empresários obtêm isenções fiscais ou “complacência” na fiscalização devida, as quais vão afetar a arrecadação de tributos, agravando a propalada crise fiscal do Estado, em nome da qual ironicamente se fazem reformas. Os trabalhadores, ao contrário, têm de berrar suas reivindicações do meio da rua, entre balas de borracha, jatos de água, gases desagradáveis e os cassetetes dos responsáveis pela manutenção da ordem.
Desde antes do atual governo, benefícios sociais vêm sendo restringidos. São, no entanto, dispositivos como o seguro-desemprego, o chamado benefício de prestação continuada, o bolsa-família, a Previdência e a renda básica de cidadania (ainda um sonho) que poderão fazer frente aos grandes desafios sociais do futuro. Como disse o poeta, em redondilha: “Tem que manter isso, viu?”
Alvaro Santos Simões Junior é professor do Departamento de Literatura e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Letras da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp de Assis.
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